Confissão de um Escriba Tardio

 


(Ao romper do meu próprio silêncio)


Sempre tive o santo receio;
De expor-me;
De escrever-me;
De sangrar em palavras.

Talvez porque escrever  para quem o faz com verdade  é um acto quase indecente, uma nudez pública. uma exposição da alma sem protecção de toga, sem escudo de jurisprudência, sem cláusula de recato.

Durante anos, fui fantasma entre vírgulas, sussurro entre parágrafos alheios, presença silenciosa em agendas que não levavam o meu nome, escrevia às escondidas, como quem tem medo de ser apanhado a rezar em voz alta. Escrevia como se fosse pecado amar a linguagem mais do que a lógica, a frase mais do que o facto.

Sou do Norte de Angola, sim, onde os ventos sopram com disciplina e os passos se pesam antes de avançar. Mas foi em Benguela, essa senhora de sal e brisa morna, que comecei a aprender a soletrar-me sem medo.

A minha Benguela não é apenas a da Praia Morena., é a Benguela de José da Silva Maia Ferreira, o detentor da relíquia espontaneidades da minha alma, foi ele que no silêncio e no imaginário  ensinou-me  a amar à  Madia, essa figura entre o real e o etéreo.
É também a Benguela de Artur Pestana, com sua ironia de aço e prosa de fogo.
É a Benguela que se descasa do Lobito, não por desdém, mas porque sabe que não lhe pertence e clama a sua independência emocional, tal como eu clamo a minha enquanto escrevo.

E é nesse clamor que me senti dividido: entre a Madia e o calor da Catumbela, entre o 1.º de Maio e o Lobito da Académica. Uma divisão boa, fértil, feita de pedaços da terra que me tocou mais do que a geografia natal.

Quem escreve, escreve com alma  e para as almas.
E por isso não deve ser julgado.

O meu receio em escrever residia no facto e no fardo de imaginar que aqueles que não deviam ler-me fossem os primeiros a fazê-lo. Que os olhos errados encontrassem as verdades certas, e isso doía.

Mas há um momento  raro, sim, em que o escriba deixa de se envergonhar da própria tinta, um momento em que as palavras deixam de ser rascunho e se tornam testamento de coragem. 

E eu, homem feito de Norte e moldado no Sul, já não posso calar o que pulsa.

Foi em Agosto, mês de revoluções e de clarões discretos, que decidi, enfim, sair dos escombros.

A partir daqui, escrever não será apenas um gesto técnico, nem um exercício estético, será um acto de resistência contra a mediocridade do tempo, uma tentativa de resgatar a profundidade num mundo viciado em superfícies.

Escrever-me-ei até ao osso.
E quem quiser que leia.
E quem não quiser, que desvie o olhar.

Porque a vergonha ficou para trás.
Porque o tempo da omissão acabou.
E porque Benguela, com o seu calor literário, ensinou-me que até o mar se revela  quando quer.


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