Crónica: Os lotadores e os mecanismos do caos urbano

 


(Do silêncio das paragens ao ruído das ruas em chamas


Nota introdutória do autor



Não sou, por natureza, um escritor, sou um leitor outsider  compulsivo, desses que mergulham sem pressa no oceano profundo das letras, e que, entre as páginas da vida e da ficção, encontram refúgio e inquietação. Sou um alienígena literário, um ser à parte no planeta da linguagem, um errante que viaja com o passaporte da dúvida e o vício da observação, como um dia descreveu-me o PJ. Escrevo não por vaidade de ser lido, mas por imperativo íntimo de compreender este país, esta cidade, este tempo, de compreender os silêncios que habitam os corredores do quotidiano, e de dar, ainda que por breves linhas, nome ao indizível.




Há uma coreografia clandestina que pulsa nas artérias de Luanda antes mesmo de o dia nascer, é um movimento semi-coreografado, de silhuetas que se deslocam entre táxis e calçadas, comandando entradas, gritando destinos, recebendo moedas suadas com apenas um rosto em punhos apressados. São os lotadores, os organizadores invisíveis da cidade que desaprendeu a esperar pelos transportes públicos, vulgo wuawua. 


De início, pareciam apenas mais um improviso típico da angolanidade urbana, como os sapateiros, as zungueiras e os mixeiros, porém, com o tempo, tornaram-se peças estruturantes de um sistema paralelo, imprescindíveis na fluidez do transporte informal, sobretudo em Luanda, onde os candongueiros substituem com audácia a ausência do Estado. 


Os lotadores não têm diploma de organização, mas formam “placas” com hierarquia rigorosa, não têm contrato, mas têm regras, longe de possuírem um estatuto, mas têm voz e com ela gritam, empurram, controlam e lotam.


Mas foi em Julho de 2025 que esta figura marginal e quase pitoresca, passou do anonimato funcional para o foco do escrutínio nacional. Num par de dias, Luanda viu-se engolida por um tumulto descomunal: autocarros vandalizados, lojas saqueadas, homens e mulheres perseguidos nas ruas, 22 mortos, centenas de feridos e mais de mil detidos.


A princípio apontou-se o dedo rebelde aos taxistas por estes terem paralisado os serviços de táxis em protesto contra a subida vertiginosa do preço do combustível, falta de paragens oficiais entre mil outras reclamações legítimas. Mas, nas entrelinhas do discurso oficial, um nome começou a ecoar com frequência quase litúrgica: Lotadores.   


Acusados de instigar, de controlar barricadas, de usar o seu poder territorial para coagir, vandalizar e expor o caos. Luanda é uma cidade que escuta rumores com a mesma seriedade com que ignora estatísticas, não há, até ao momento, prova pública definitiva de que os lotadores tenham sido os cérebros por trás da destruição, mas há convicções ardentes, tão inflamadas quanto os pneus que arderam nas estradas.


A narrativa montada é convenientemente simples: os mesmos que organizam os táxis agora desorganizam a cidade. É possível, também que, com tantos jovens empurrados à informalidade, tenham apenas surfado a onda do protesto, aproveitado o vácuo das autoridades, e reivindicando, ainda que de modo bárbaro, um espaço na urbe que os condena ao improviso diário.


Mas quem são, de facto, os lotadores?


São jovens sem formalidade, mas com função;

Sem salário fixo, mas com horário ingrato;

Sem cobertura jurídica, mas com responsabilidades tácitas.


Para muitos, a ponte entre o caos e o trajecto, para outros são os mercadores do desassossego urbano, ganham entre 8 a 10 mil kwanzas por dia, facturam mais do que muitos funcionários públicos, vivem sem plano de saúde, sem protecção social, sem direitos laborais em contrapartida, são ricos em precariedade.


Há neles algo de profundamente angolano: a capacidade de criar sentido onde reina a ausência, a resistência moldada em estratégia de sobrevivência, a ousadia de transformar a esquina num centro de poder efémero. Mas também há o perigo de romantizar, pois, se por um lado são produto da falência institucional, por outro carregam, nos ombros, o risco de transformar a função em prepotência. Relatos de ameaças, extorsão e imposição violenta são comuns, muitos cidadãos que dependem dos táxis vivem reféns de seus métodos e humores. 


A cidade, assim como o escriba, assistem perplexos, a esta inversão de papeis: 


  1. Os que sempre estiveram à margem agora estão no centro do palco, ainda com os pés cobertos de lama;

  2. Os que preenchiam paragens agora são parte do vazio que destruiu lojas e vidas.


É fácil apontar o dedo a eles, o difícil é apontar o dedo ao sistema que os gerou, a sua existência é menos uma escolha do que um sintoma: O Estado ausente deu lugar à estrutura espontânea do improviso, e esta, por sua  vez, quando ferida ou pressionada explode.

A pergunta que fica não é se eles, os lotadores, são culpados, é como chegámos a um ponto em que precisamos deles para garantirem a ordem e também os responsabilizamos pelo caos?


Talvez sejamos cúmplices.


Talvez Luanda, nesta revolta de Julho, tenha apenas deixado escorrer pelas ruas a sua mais profunda confissão: 


De que há um sistema dentro do sistema;

De que há uma guerra entre a cidade formal e a cidade real;

E de que os lotadores, estes herdeiros da urgência são mensageiros mais gritantes de uma capital que, muitas vezes, já nem se escuta a si mesma.


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