Angola: Em Busca dos Amores Perdidos

 

"Qualquer semelhança é mera coincidência, o narrador é um autêntico indisciplinado convencional"



Quando Proust escreveu Em Busca do Tempo Perdido, falava da memória como quem decifra os vestígios invisíveis da vida. O tempo, para ele, não era apenas cronologia: era emoção condensada, um eco de saudades e de ausências. Em Angola, essa busca adquire contornos próprios, mais duros, mais colectivos e viscerais.


É nos cafés de Luanda que essa memória ganha corpo, o Eros Café e o Arts Café da vida imaginária, cenários frequentes para intelectuais, artistas e políticos, transformaram-se em palcos onde a cidade encena os seus amores perdidos. Mas a verdade é que, para além do charme cosmopolita, esses lugares carregam também uma contradição: são espaços de reflexão e boémia, porém, fechados à realidade da maioria. Entre taças e falas Cacomas, a Angola real feita de bairros esquecidos, de juventude na sua maioria lotadores e sem futuro, de amores interrompidos pela sobrevivência permanece à porta.


O narrador que algumas vezes é tratado por José Maria, o Outsider, sempre presente nesses espaços mas “ meio distante”, observa essa dualidade: 

  • Cafés que se pretendem guardiões da memória;

  • Mas que, na prática, reproduzem exclusões.


É um país dentro do país, ali, fala-se de política, literatura, poesia, enquanto lá na ANATA sem Natas e fora da cidade pulsa noutra cadência, marcada pela desigualdade e pela pressa de viver.


Neste quadro, a imagem de Agostinho Neto em busca da Maria Eugénia Neto surge como metáfora maior. O poeta e eterno presidente agora residente nas bandas da Praia do Bispo não separava a luta política da intimidade do amor. Hoje, a Angola que herda a sua memória parece ter esquecido essa fusão: a política tornou-se distante do afecto e o poder divorciou-se da poesia.


A crítica é inevitável: a Angola que se encontra nos cafés é, muitas vezes, uma Angola que não dialoga com a rua, vive-se uma saudade selectiva, elitista, como se apenas alguns tivessem direito à memória e a reinvenção do futuro. Mas os amores perdidos do país não são apenas os de uma geração privilegiada, são também os da juventude esquecida, das famílias separadas pela diáspora próxima de Luanda dos (5) cinco “elengo” e  das promessas políticas que ficaram pelo caminho.


E talvez aqui resida a lição de Proust: a memória não existe para nos aprisionar, mas para nos devolver a coragem de viver. Angola e os angolanos não se podem contentar com os amores perdidos, precisamos nos reinventar em meias chamas portuguesas, porque, no final, não será o silência dos cafés que o país precisa  reencontrar, mas no grito vivo das ruas, no abraço que une a saudade ao porvir, no instante em que a memória deixa de ser lamento e se transforma finalmente, em esperança.





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